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I HAVE a dream

(Por uma memória negra viva e instituições resilientes)


Foto de Patrícia Brito e Tarcísio Flecha Negra na mostra O universo místico de J. Altair, 2013
Foto de Patrícia Brito e Tarcísio Flecha Negra na mostra O universo místico de J. Altair, 2013


Como Martin Luther King, o vereador Tarcísio Flecha Negra (in memoriam) teve um sonho. Um sonho gestado não apenas no campo simbólico, mas articulado em lei, proposta e ação concreta: criar um Museu de História e Cultura do Povo Negro de Porto Alegre — um espaço de memória, pertencimento e afirmação que extrapolaria os limites da cidade, tornando-se referência para o estado do Rio Grande do Sul. A Lei nº 10.986, de 6 de dezembro de 2010, foi o marco inaugural dessa utopia necessária.

O sonho de Tarcísio era o de reunir cultura e educação como direito de base, dando aos afrodescendentes o acesso à sua própria história — uma história que, para muitos, ainda é apagada, silenciada ou desvalorizada, mas que, para quem a conhece, é motivo de orgulho. Ele sabia que a dignidade começa quando podemos nos ver refletidos no passado e projetados no futuro.


Entretanto, o tempo passou e o que se vê é o velho ciclo do descaso institucional. Acervos não foram cuidados. Arquivos foram deixados à margem. E mais uma vez, o poder público — municipal e estadual — se mostrou omisso diante da urgência da memória negra. A realidade de manter, apoiar e preservar organizações negras, centros culturais, museus e arquivos segue sendo uma luta travada por poucos, mesmo sendo um direito coletivo.

Na cidade onde o chão também carrega histórias alemãs, italianas e de mais de vinte grupos migrantes que construíram suas referências, a história negra parece sempre ter que implorar por espaço, verba e reconhecimento.


Esse abandono se soma a uma longa linhagem de apagamentos. Basta lembrar que, no século XIX, durante a abolição da escravatura, o Brasil queimou os registros do tráfico negreiro por ordem do Visconde de Rio Branco. Queimar esses documentos foi apagar nossa história. O que se repete hoje, de outra forma, quando se recusa cuidado, verba e infraestrutura às instituições negras.

Tarcísio teve um sonho. Mas um sonho, para se realizar, precisa de estrutura.


Nossas organizações de artes negras podem prosperar — absolutamente. Mas, para isso, é preciso que conselhos, financiadores, governos e políticas culturais depositem mais do que verba, e sim, confiança e continuidade.


O que será necessário para que instituições de artes negras — como arquivos, museus, galerias, coletivos e centros culturais liderados por pessoas negras — não apenas sobrevivam, mas sejam reconhecidas como essenciais à paisagem cultural e à soberania simbólica do país?

A resposta mais imediata é: investimento consistente e sem amarras raciais. Mas a resposta mais profunda é: reparação e confiança institucional.


Um dos maiores entraves que lideranças negras enfrentam é o racismo estrutural nos modelos de financiamento cultural. Diversos estudos mostram que muitos financiadores ainda não compreendem o impacto da raça nos problemas sociais que dizem querer enfrentar. E mais: continuam a aplicar critérios enviesados na escolha de líderes e organizações apoiadas, o que restringe drasticamente o acesso a recursos por parte de instituições negras.

Esses filtros raciais — ainda que inconscientes — minam a resiliência. E resiliência, como capacidade de uma organização de “antecipar, preparar-se, responder e se adaptar a mudanças e interrupções súbitas para sobreviver e prosperar”.


As instituições negras são resilientes por natureza — foram forjadas assim. Mas a resiliência não pode continuar sendo uma exigência solitária, imposta a quem já vive há séculos sob pressão.


Se o Brasil deseja reparar minimamente sua dívida histórica com a população negra, precisa transformar a memória negra em política pública duradoura. Preservar, financiar e manter vivas essas organizações é uma responsabilidade do Estado, das fundações, das universidades, dos museus e dos próprios setores culturais.

Porque a cultura negra, ainda que marginalizada, é fundacional. E toda fundação precisa ser cuidada.

Tarcísio Fecha Negra tinha um sonho. Esse também é o nosso sonho!


 
 
 

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