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ARTISTAS AFRO-BRASILEIROS NA TRANSIÇÃO ENTRE DOIS SÉCULOS


Rosana Paulino, Sem título, da série Bastidores [Molduras], 1997

Enquanto a arte latino-americana tem alcançado um reconhecimento crescente desde os anos 1990, basicamente como resultado de políticas curatoriais e projetos de pesquisa que examinaram seus desenvolvimentos históricos, poéticos e conceituais, os artistas afro-latino-americanos - especialmente as mulheres - têm sido quase invisíveis até muito recentemente. Como apontou a teórica brasileira Djamira Ribeiro, em consonância com a teórica portuguesa Grada Quilomba, a mulher negra, que não é branca nem masculina, representa uma dupla deficiência: “A mulher negra é o 'outro' do 'outro'.” 1 Essa dupla exclusão pode ser vista claramente na história da arte latino-americana. A artista Rosana Paulino (São Paulo, 1967) destacou que as mulheres negras estão na base da pirâmide social do Brasil, quase ausentes na arte. Seu trabalho examina a situação das mulheres negras.


As ações de pesquisa e curadoria que levem em conta suas contribuições são recentes, embora esse campo de investigação esteja em plena expansão. Como funciona esse processo de renderização de visibilidade? Em que medida a história da arte latino-americana modifica seus conceitos ao incorporar a presença de artistas negras?


Realizou recentemente exposições de trabalhos de mulheres latino-americanas - como Radical Women. Arte Latino-americana, 1960-19853 - evidenciou a presença restrita de mulheres negras no campo da arte naquele período. Embora sua representação continue insuficiente, a situação mudou nas últimas duas décadas. Isso é atestado por dois momentos históricos. Se bem que, desde a década de 1960, existam algumas artistas negras reconhecidas - como Maria Lídia Magliani (Pelotas, 1946-Rio de Janeiro, 2012), cujo tema na pintura era o corpo feminino (às vezes de mulheres negras); Maria Auxiliadora da Silva (Campo Belo, 1935-São Paulo, 1974), artista autodidata cuja obra, marcada por uma sensibilidade não acadêmica, assumiu a sociabilidade afro-brasileira; e Maria Adair (Itiruçu, 1938), cuja pintura abstrata evocava a natureza - ainda, ao se aprofundar naquele período, o que se destaca é um apagamento quase total desses artistas no mundo oficial da arte, em termos de exposições em museus, mostras em galerias e coleções. A mostra Manobras Radicais de 2006, uma das primeiras a reunir uma sólida seleção de obras de mulheres brasileiras, contou com a presença de Rosana Paulino. Esta exposição e outros textos têm afirmado repetidamente que o feminismo não está abraçado na arte brasileira. A própria R. Paulino não se identifica como feminista. Embora uma das reivindicações feministas das décadas de 1970 e 1980 fosse o direito de trabalhar fora de casa, as mulheres negras sempre trabalharam. A mãe, de fato, limpava as casas das feministas paulistas. Mas, após os estudos sociológicos de sua irmã sobre a violência familiar, ela abordou a violência contra as mulheres na série Bastidores [Frames, 1997].


No final da década de 1980, algumas mostras brasileiras passaram a dar visibilidade às mulheres negras e a possibilitar sua inserção no cenário artístico do país. A título de cronologia incompleta, pode-se citar a exposição A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica (1988), por ocasião do centenário da abolição da escravidão no Brasil, organizada pelo artista e curador brasileiro. Emanoel Araújo (Santo Amaro, 1940) no Museu de Arte Moderno de São Paulo (MAM-SP), com obras das artistas Maria Adair e Maria Lídia Magliani. E. Araújo, figura central nas transformações produzidas no início do século XXI, foi o primeiro cabeça negra da Pinacoteca de São Paulo (1992-2002). Sob sua direção, a quantidade de obras de artistas afro-brasileiros no acervo cresceu consideravelmente. Em 2004, foi diretor fundador do Museu Afro Brasil em São Paulo, onde permanece. Em 2013, montou uma nova exposição, A Nova Mão Afro-Brasileira, com obras de 24 artistas, entre eles Rosana Paulino e Sônia Gomes (Caetanópolis, 1948). As estatísticas revelam quão poucas mulheres têm sido representadas entre os artistas afro-brasileiros. Nos últimos anos, assistimos a iniciativas curatoriais e institucionais consistentes com o objetivo de tornar mais visíveis os artistas afro-brasileiros, tanto os da longa história do país como entre as gerações mais jovens. Em 2014, a exposição Historias Mestiças, com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz no Museu de Arte de São Paulo e no Instituto Tomie Ohtake da mesma cidade, destacou uma visão da história da arte brasileira que subverteu o privilégio canônico do abstrato branco e arte formalista. O espetáculo paulista Território: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca (2015-2016), com curadoria de Tadeu Chiarelli, reuniu obras de artistas negros dos últimos dois séculos.


O ano de 2016 foi marcado por debates museológicos a respeito da programação do Centro Cultural Itaú São Paulo, culminando em uma série de mesas redondas (Diálogos Ausentes), com a participação, entre outros, das artistas Aline Motta (Niterói, 1974) e Eneida Sanches ( Salvador, 1962), a curadora Fabiana Lopes, e a artista e curadora Diane Lima (Mundo Novo, 1986), que moderaram as sessões. Entre as novas vozes curatoriais estavam Igor Simões e Hélio Menezes. O evento marcou o surgimento de uma nova cena de artistas e curadores negros. Mas, como aponta F. Lopes, na comunidade da arte negra as medidas e o pensamento sobre a representação partiam de espaços autogestionários, como a programação do Ateliê Oço / Galeria Cine Sol em São Paulo, dirigida pelo artista e curador Claudinei Roberto da Silva (São Paulo, 1963) de 2005. Por mais de uma década, funcionando sem patrocinadores, este foi um laboratório de pesquisas que deu visibilidade ao trabalho dos artistas negros e serviu de plataforma para debates. A exposição Historias Afroatlânticas 2018 realizada no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), juntamente com as mostras individuais neste museu em 2018-2019, trouxeram em primeiro plano a narrativa afro-atlântica das artistas Maria Auxiliadora da Silva, Sonia Gomes e Lucia Laguna (Campo dos Goytacazes, 1941). Paralelamente, Rosana Paulino foi curadora de uma coletiva na Pinacoteca de São Paulo (2018-2019), que seguiu para o Museu do Arte do Rio de Janeiro. Essa cronologia é um testemunho da transformação que alguns museus brasileiros estão passando, à medida que começam a popularizar artistas afro-brasileiros.


Embora o Brasil não tivesse um sistema de racismo legal como a segregação nos Estados Unidos, as desigualdades são profundas. O ideologema da “democracia racial” que esconde o racismo na sociedade brasileira, e o mito das “três raças”, referindo-se à a alegada harmonia entre indígenas, europeus e africanos, mascara uma desigualdade racial que tem sido abordada nos últimos anos por medidas de promoção da diversidade. Entre eles estão os programas de ação afirmativa (cotas) que as universidades começaram a implantar em 2003 e que tiveram um efeito real na formação de inúmeros artistas. Os discursos baseados no terror e no racismo, e a guerra aos pobres impulsionada pelos discursos públicos do atual presidente Jair Bolsonaro, colocam em risco essas políticas inclusivas. Os artistas negros têm mais presença na arte contemporânea brasileira hoje do que durante o século XX. Em 2015, pela primeira vez, um artista negro, Paulo Nazareth (Belo Horizonte, 1977), foi convidado a representar o Brasil no pavilhão latino-americano da Bienal de Veneza. Vídeo, fotografia e performance são campos com forte presença negra entre artistas emergentes. Uma lista necessariamente incompleta de artistas negras incluiria Musa Michelle Matiuzzi (São Paulo, 1983), Charlene Bicalho (João Monlevade, 1982), Priscila Rezende (Belo Horizonte, 1985), Juliana Dos Santos (São Paulo, 1987), Lídia Lisboa (Guaíra, 1970), Janaina Barros (São Paulo, 1979), Renata Felinto (São Paulo, 1978), Ana Lira (Caruarú, 1977) e Miriani Figueira (Porto Alegre, 1986), entre muitos outros. Esses artistas introduziram questões e conceitos anteriormente excluídos da arte contemporânea brasileira. Um exemplo é a imagem cultural do cabelo preto, como pode ser observada na performance Bombril (2010-2018), em que Priscila Rezende confronta o espectador com o uso literal do nome de uma popular marca de lã de aço, também pejorativa. palavra para o cabelo das mulheres negras, usando seu cabelo para esfregar panelas e frigideiras. Sonia Gomes, Lídia Lisboa e Janaina Barros usam os tecidos e a costura para fazer trabalhos que ligam os objetos feitos à mão à poética da memória, das suas memórias. A memória também é tema na obra de Aline Motta, que viajou à Nigéria em busca da história de sua identidade, uma mulher descalça no Brasil e descalça na África (Outros) fundamentos (2017-2019), em uma poética reflexão sobre a diáspora que começou há quatro séculos com a introdução da escravidão no Brasil. Um incisivo interrogatório de identidade também foi feito por Renata Felinto, cujos pés descalços reconfiguram territórios de memória [Danço na terra que piso (danço no chão que piso), 2014]. Inscrição em site social onde a cor, na imaginação de Juliana Dos Santos, se separa. Cor e sua arbitrariedade, que ela transpõe para a chave do azul. Esses artistas afro-brasileiros, formados na linguagem da arte contemporânea, fazem trabalhos marcados por referências a suas subjetividades e loci de enunciação profundamente impregnados do legado da escravidão, da diáspora e do racismo estrutural da sociedade brasileira.


*Traduzido do inglês por Leo Stephen Torgoff.

**Andrea Giunta é curadora, escritora e professora de arte latino-americana e moderna e contemporânea na Universidade de Buenos Aires, onde obteve seu doutorado. Co-curadora da exposição Mulheres Radicais. Arte Latino-americana. 1960-1985 (Hammer Museum, LA, Brooklyn Museum, NY e Pinacoteca de São Paulo, 2017-2018). Curadora-chefe da 12ª Bienal, Feminine (s). Visualities, Actions, Affects, Porto Alegre (2020) e a exposição Puisqu’il fallait tout repenser / Pensar todo de nuevo (Galeria Rolf, Buenos Aires, 2020 / Les Rencontres d'Arles, 2021). Autor de Feminismo y Arte Latinoamericano. Historias de mujeres que emanciparon el cuerpo (Siglo XXI, 2018, 7ª edição 2021).

***Artigo original em 23.07.2021, na revista Aware






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