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A crise e a desigualdade racial nas artes: um diálogo sobre cotas

Pandemia intensifica desigualdade racial. Combate ao racismo estrutural deve passar pela adoção de cotas em instituições culturais


Luciara Ribeiro e Rafael Domingos Oliveira



My Life Matters, da série Aceita? (2020), de Moisés Patrício (Foto: Cortesia do artista)


Debates em torno do racismo estrutural e as lutas antirracistas estiveram em evidência nas últimas semanas. Desde a morte do afro-estadunidense George Floyd, em 25/5, essa tem sido uma pauta presente nas ruas, na imprensa e nas mídias sociais. Tais manifestações se iniciaram como denúncia da violência policial e da brutalidade na morte de Floyd, porém foram ganhando outros campos, e deixaram evidente que não é possível combater a violência policial sem combater o racismo estrutural que alicerça as sociedades contemporâneas. 


Nesse ínterim, dois momentos movimentaram as redes sociais de museus, instituições artísticas e dos demais agentes das artes. O primeiro foi a campanha #blackouttuesday, adotada por diversos setores. Com a postagem de uma imagem de fundo preto seguida pela hashtag, milhares de pessoas no mundo demonstraram o seu comprometimento com a luta antirracista através das redes sociais. 


Muitos museus e instituições das artes publicaram em suas redes sociais mensagens em apoio à luta antirracista, um posicionamento de extrema importância, mas que por si só não é suficiente. É necessário que os museus e instituições culturais promovam ações diárias de práticas antirracistas, incorporando essa premissa em suas estruturas. Assumir essa responsabilidade perante a sociedade é fundamental e urgente. É o que afirma a filial brasileira do International Council of Museums – ICOM na postagem do dia 4/6 em suas redes sociais: uma mensagem que menciona a necessidade da luta antirracista pelos museus para além de ações temporárias, mas que sejam postas como práticas diárias e constantes. O órgão que regulariza e acompanha a atuação dos museus no território nacional menciona que: “As manifestações nas redes sociais são importantes, mas são as práticas cotidianas que efetivamente têm o poder de combater o racismo estrutural e ajudar na transformação”. E finaliza perguntando “que iniciativas antirracistas estão em curso hoje nos museus brasileiros?”. 


O segundo debate que esteve em evidência foi a retirada ou não de monumentos ligados às histórias da escravidão, aos colonialismos e às opressões a determinados grupos sociais. Alguns defendem que os monumentos, mesmo tendo seus históricos provindos de visões opressoras, devem ser preservados, sendo essa uma ação que respeita o momento que foram concebidos. Outros defendem a sua derrubada ou redirecionamento para outros espaços, demonstrando ser essa uma ação de respeito às dores daqueles que foram mortos e aos seus descendentes. Precisamos, primeiramente, nos perguntar a quem é conveniente mantê-los ou destruí-los, e o porquê. Sem esquecer que a memória é um campo em disputa, que suas narrativas são construídas e que, portanto, são plausíveis de serem questionadas, evocar tal debate é um modo de revermos nosso passado, de olharmos para as feridas que ainda estão abertas. 


Quem são os sujeitos mais impactados? As campanhas e o debate sobre os monumentos aconteceram após algumas semanas em que museus realizaram demissões em massa, sendo a maioria dos funcionários demitidos integrantes das equipes que ocupam posições em desvantagens na hierarquia e em termos de salário. É o caso dos setores educativos e daqueles que atuam diretamente com o público. Que a crise decorrente da pandemia da Covid-19 traria consigo um profundo impacto econômico, colocando milhares de empregos e até mesmo a existência de instituições de cultura em risco, não é uma novidade. Mas a pergunta que fica é: quem são os sujeitos mais impactados pela crise? Como isso se relaciona com a formação social brasileira e os sentidos da nossa desigualdade?


O racismo nas artes é estrutural e sistemático. Apesar de estarmos vivendo um momento de efervescência de debates sobre o racismo e suas facetas, esse não é um tema novo. Em 1966, há mais de 50 anos, o pesquisador, teatrólogo e gestor cultural Abdias do Nascimento denunciava o racismo nas artes em documento direcionado ao Ministério de Relações Exteriores, a famosa Carta a Dacar. Nele, Abdias critica o modo como foi realizada a seleção da representação brasileira para o I Festival de Artes Negras que teve lugar na capital senegalesa como parte do projeto artístico liderado pelo poeta e então presidente Léopold Sédar Senghor. Para Abdias, além da seleção ter sido realizada sem consulta à comunidade artística negra, a ausência do Teatro Experimental do Negro entre os participantes evidenciava o processo de exclusão pelo qual passam os artistas que denunciavam o racismo nas artes. Nas próprias palavras de Abdias, “os artistas negros não foram ouvidos, nem consultados em assunto de que são parte integrante. Menosprezaram sua pessoa humana, desdenharam sua arte. (…) definiu-se o que é e não é arte negra ou o que eles supõem seja arte negro-brasileira, com a mais absoluta marginalização e desprezo aos militantes dessa mesma arte”. 


Abdias do Nascimento tinha um projeto artístico para o Brasil. Além de inaugurar a participação de pessoas negras nos palcos teatrais, ele também propunha a criação de um museu que assegurasse a presença das artes e acervos afro-brasileiros. O Museu de Arte Negra, idealizado por ele em 1950, período de criação de diversas instituições modernas no país – como o Museu de Arte de São Paulo, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a Bienal de São Paulo – chegou a ter o acervo desenhado, mas o espaço para abrigar permanentemente tais peças nunca foi efetivado. Como parte desse desejo, 54 anos depois, foi inaugurado o Museu Afro Brasil, também idealizado um artista e curador negro. O espaço que expõe a coleção organizada por Emanoel Araújo foi uma das ações reivindicadas pelos Movimentos Negros, e que, até hoje, continua sendo uma das poucas instituições no país com uma coleção dedicada às culturas afro-brasileiras, e que, constantemente, tem a sua permanência ameaçada.


Acompanhamos, nos últimos anos, um calendário ativo de grandes  exposições e ações que debateram a presença de artistas negros nas artes e nas instituições artísticas, com a atuação de curadores negros e indígenas, e que lançaram olhares para o racismo estrutural e institucional no setor. Elas devem ser reconhecidas e celebradas. Entretanto, em alguns casos, esses projetos foram realizados através da ação pontual de pesquisadores e curadores, sem a participação efetiva da comunidade artística negra e não criou estruturas sólidas e permanentes para a continuidade das ações, bem como a continuidade de trabalhadores negros no setor. Segundo o pesquisador e curador Renato Araújo, as artes brasileiras já passaram por períodos de ondas de valorização das artes, das culturas e histórias negras e afro-brasileiras, que atingem o pico em determinados momentos, mas que declinam ou são facilmente desmanteladas. Provavelmente, essas quebras se dão por falta de comprometimento e mudança real no setor, sendo a representatividade por si só insuficiente para a construção de um campo antirracista nas artes. 


Revisão de estruturas Nas sociedades modernas, as instituições possuem um papel bem sólido: elas orientam e padronizam comportamentos que proporcionam a reprodução das estruturas sociais. O jurista e filósofo Silvio Almeida, no já clássico Racismo estrutural, afirma: “É no interior das regras institucionais que os indivíduos se tornam sujeitos, visto que suas ações e seus comportamentos são inseridos em um conjunto de significados previamente estabelecidos pela estrutura social”. Não podemos nos iludir com os limites institucionais. Certamente, grandes ganhos são possíveis para alterar a realidade material e simbólica da população quando as instituições são ocupadas por exposições de arte afro-brasileira, africanas, indígenas, afro-diaspóricas, entre outras. No entanto, quando essas ações não refletem a revisão das estruturas que fundamentam as instituições, o que vemos é um retorno à exclusão.


As notícias de demissões na área da Cultura não param de chegar. De um lado, elas são reflexo do parco investimento público no setor, dos desmandos privatistas das gestões de Organizações Sociais e das desigualdades entre os centros hegemônicos e as periferias do Brasil (vide a situação desastrosa das instituições fora do eixo sudestino). Por outro lado, elas refletem a desigualdade já presente nas instituições. Quando a maior parte dos trabalhadores demitidos são negros e pobres, fica evidente que o problema não foi criado agora.


Em 1976, analisando o caso Degraffenreid vs General Motors nos Estados Unidos, a professora Kimberlé Crenshaw percebeu como o racismo se entranha nas decisões institucionais, ainda que isso não seja aparente. Naquele contexto, Crenshaw se referia às cinco mulheres negras que processaram a General Motors por discriminação de raça e gênero. Elas foram demitidas após uma crise global que impactou a produção da fábrica. Entre os critérios para as demissões, estava o “tempo de serviço”. Como a contratação de mulheres negras era uma prática relativamente recente na fábrica, foram elas justamente as mais impactadas. Para compreender as demissões, portanto, era preciso relacionar o racismo e o sexismo que estruturaram a história da fábrica e que, no contexto da crise, acabaram por impactar justamente as trabalhadoras negras, ainda que sob o suposto argumento do tempo de trabalho.  


No caso atual, em pesquisa realizada entre 17 e 26/4, a seLecT demonstrou que 52% dos trabalhadores das artes não possuem contrato de trabalho. Dos 462 participantes da pesquisa, 79,1% recebem salários menores que R$ 5 mil e, até aquele momento, 20,8% haviam sido demitidos ou tiveram contrato suspenso. A maior parte desses é constituída por artistas e trabalhadores dos setores de educação e pesquisa. Em 19/5 trabalhadores demitidos do Museu Afro Brasil denunciaram, em carta aberta, que a gestão da instituição focou, no conjunto das demissões, os setores de atendimento ao público e, em sua maioria, negros. Situação parecida aconteceu em instituições como Inhotim e Instituto Tomie Othake, com destaque aos profissionais negros.


Por isso, é correto afirmar que a crise não cria a desigualdade, mas a radicaliza. As estruturas institucionais, fortemente marcadas pela hierarquia racial, encontram na crise econômica que impacta as instituições uma forma de retornarem ao estado de privilégio dos altos cargos, ocupados em geral por sujeitos brancos e das elites locais, em detrimento dos funcionários de reduzido poder aquisitivo e de grupos já marginalizados socialmente. Como repensar esse estado de coisas?


Que museus queremos para o futuro? Além de políticas públicas permanentes, que ampliem o investimento no setor e assegurem a estabilidade financeira das instituições, acreditamos que é necessário retomar um assunto que, muitas vezes, passa ao largo: as cotas. Desde que foi aprovada em 2012, a Lei de Cotas estabelece a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas, de baixa renda, pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, auxiliando o ingresso desses indivíduos no Ensino Superior. A prática ensejou a discussão em demais instituições públicas, por meio de concursos, e foi acompanhada por muitas instituições privadas, inclusive dos setores empresariais, que veem nessa ação uma possibilidade de reduzir a desigualdade social e racial que marca a sociedade brasileira. Um exemplo da adoção de cotas para nos setores trabalhistas é observado na África do Sul do pós-apartheid. O país que viveu por 46 anos em regime oficial de separação, discriminação e exclusão, encontrou na  Lei de Igualdade no Emprego, promulgada em 1998, a possibilidade de diminuição das diferenças econômicas e sociais. 


A situação da crise decorrente da pandemia da Covid-19 abre a discussão a respeito das instituições culturais. Se, diante da crise do setor, seria muito difícil manter todos os cargos de trabalho, com a existência das cotas nessas instituições seria possível assegurar que as desigualdades não se aprofundassem. Não estamos defendendo aqui a normalização dos processos de demissão, nem mesmo dizendo que a demissão de uns é mais aceitável que a de outros. No entanto, na hora de repartir as consequências trágicas de uma crise, a balança não pode continuar sendo desfavorável às populações negras e pobres.  


Com as cotas, é preciso também aprofundar o debate sobre a equidade salarial. Não se trata apenas de ensejar a contratação de profissionais negros. É necessário que a política seja feita a partir de um debate integral, que considere os cargos na hierarquia e os salários. A situação atual também revela as dimensões desse problema: a adoção de medidas de redução da jornada de trabalho leva em conta as diferenças salariais? Uma redução desse tipo, que pode chegar até 70% da carga horária, tem impacto diferente no salário de diretores e educadores, por exemplo. 


Além de políticas efetivas, que devem estar no horizonte das lutas por melhores condições de trabalho e equidade salarial, as gestões devem ser chamadas à consciência no presente. É urgente entender que quando não fazemos nada para alterar essa estrutura, estamos contribuindo para uma sociedade adoecida fisicamente, psicologicamente e simbolicamente. Precisamos de práticas efetivas e comprometidas, que trabalhem nas bases.  Que tipo de museus queremos para o futuro? Quais acervos queremos levar adiante? O que queremos com os museus e suas narrativas? As instituições precisam diversificar os seus acervos, rever as narrativas e expografias, os materiais de estudo. É importante que admitam suas falhas e busquem processos que objetivem resolvê-los. Mas uma instituição que naturaliza equipes compostas majoritária ou totalmente por pessoas brancas não pode se definir como antirracista. É necessário que se contratem os profissionais negros com remunerações justas para atuarem em todas as equipes. É necessário contratar produtores, pesquisadores, curadores. É necessário propor programações com diversidade de autoria e temas durante todo o ano. 


Ainda que, para muitos, as instituições culturais, museus e centros de artes sejam entidades descoladas da realidade imediata que as estruturam, não podemos deixar de lembrar que os sujeitos que as compõem são trabalhadoras e trabalhadores. No Brasil, essa categoria tem cor, classe social e gênero. Se nada for feito para alterar a realidade de desigualdade que marca essas instituições, a cada crise assistiremos os mesmos sujeitos sendo excluídos, vitimados e marginalizados. Nenhuma sociedade será realmente democrática enquanto as instituições que criam e preservam sua cultura também não se democratizarem, verdadeira e radicalmente. 


Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. Mestra em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo e pela Universidade de Salamanca. Graduada em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo. Interessa-se por questões relacionadas à decolonização da educação e das artes e pelo estudo das artes não ocidentais, em especial as africanas, afro-brasileiras e ameríndias

Rafael Domingos Oliveira é historiador e educador. Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo, mestre e bacharel em História pela Universidade Federal de São Paulo. Foi coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil. Autor do livro Vozes Afro-Atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e liberdade (no prelo).


Referências bibliográficas ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. CRENSHAW, Kimberlé. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence against Women of Color,” in The Feminist Philosophy Reader, Alison Bailey and Chris Cuomo (eds.). New York: McGraw-Hill, 2008, pp. 279–309. NASCIMENTO, Abdias. “Carta a Dacar”. Revista Tempos Brasileiros. Ano 4. Abril-junho de 1966.. Número 9/10, p. 100. SILVA, Renato Araújo da. “As ondas de valorização institucional do negro” In Arte Afro-Brasileira: altos e baixos de um conceito. São Paulo: Ferreavox, 2016, pp. 24-65.


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