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Enganam-se aqueles que não enxergam na cultura afro-brasileira uma extensão da história do próprio país. De fato, apresentar parte do acervo do artista, que em muito mexe com a quietude de cada pessoa, abre uma lacuna para o diálogo acerca do patrimônio imaterial religioso oriundo de signos, semióticas e semioses. A exposição Ingênuo e Primitivo: um tributo a J. Altair, procurou valorizar e conservar suas formas de expressão no intuito de promover um olhar reflexivo acerca da manutenção das matrizes ancestrais como polos de resistência que sustentam o patrimônio cultural de origem africana.
A religião possui sua linguagem peculiar para transmitir quem ela é, seus sistemas e modo de pensamento; ela é permeada de símbolos que lhe dão sentido. Esses símbolos e imagens são universais na religiosidade, principalmente africana, tendo suas versões particulares em cada expressão. Os símbolos consistem em aberturas para um mundo trans-histórico, mas encontram sua própria maneira de acordo com a sua cultura e influências. O ritual aqui é o meio transmissor do mito e dos símbolos religiosos. A linguagem ritual, por sua vez, é necessária para que haja transmissão de símbolos, valores e a narrativa mítica que lhe dá sentido através de longas gerações.
Neste sentido, símbolos são capazes de indicar como as experiências são vivenciadas, haja vista que o indivíduo está exposto à interação com um mundo de sensações – temperatura, sons, cheiros, texturas, formas, cores. Tudo nos “entra” pelos sentidos como a visão, o olfato, o paladar, a audição, o tato, os quais recebem estímulos que, posteriormente, serão transformados através do raciocínio em representações que formam no intérprete uma idealização mental dos objetos, culminando na semiose.
O símbolo se relaciona com seu objeto por força de uma ideia na mente do usuário; o Oxé, machado duplo de Xangô, enquanto símbolo de força e de alta magia; os búzios e as diversas conchas utilizadas nos rituais, como símbolo de riqueza; a água, como símbolo de fertilidade; o chifre de búfalo, que adorna o assentamento de Iansã, como símbolo de força deste Orixá; as máscaras que nos apresentam as ancestrais femininas são as grandes “mães feiticeiras”; o pássaro, longe de ser uma ave em seu sentido literal como uma simples ave está comprometido com “os pássaros”, de quem as “mães feiticeiras”, as ÀJÉ, se apropriam e se personificam. Estas feiticeiras representam “os poderes místicos da mulher”; (VERGER, 1992, p.24; 2002, p.122).
O mesmo ocorre entre os Iorubás, que marcam seus rostos com cortes que apontam sua posição social ou no modo de se vestir: quando uma Ialorixá usa seus diversos colares, está exibindo a sua posição na hierarquia. Um outro significado constantemente intrínseco, mas essencialmente como parte de uma trama e de um processo podemos observar no assentamento de Exu com seus tridentes. Neste sentido, o Ogó e a cabaça de Exu guardam semelhança com o órgão sexual masculino e tornam-se, assim, símbolos de alta magia: o Ogó, espécie de cetro mágico, pode transportar Exu para os caminhos mais longínquos e sua cabaça lhe confere ligação à ancestralidade feminina, masculina e a criação do mundo. Exu está ligado a estes símbolos por ser o portador mítico do sêmem e do útero ancestral (SANTOS, 1986, p.130).
Considerada por alguns como arte periférica, ou seja, à margem da sociedade, a flutuação entre os conceitos de arte Naïf ou arte primitiva moderna e de arte popular constituem um campo próprio. O público aqui se divide em dois: aqueles a quem as figuras representam e têm um poder sagrado e aqueles cujo interesse é meramente estético.
Patrícia Brito
Curadora
Sobre o artista J Altair
O pintor naïf ou primitivista J. ALTAIR (João Altair de Barros) como era conhecido no mundo artístico, nasceu em 13 de agosto de 1934 e faleceu em 15 de fevereiro de 2013 em Porto Alegre. Afro-brasileiro nato, filho de Bará - Babalorixá da nação Yjexá (Ijexá é uma nação africana formada pelos escravos vindos da Nigéria, concentrada nas religiões Batuque e Candomblé); também foi um dos fundadores da escola de samba Praiana, em Porto Alegre e atuante na escola Bambas da Orgia, também em Porto Alegre. Leonino, tem diversas pinturas com a influência direta da religião de matriz africana (Yorubá). Começou a pintar após um curso com o pintor italiano Vicente Perllasca, ainda na década de 50 e militou em São Paulo nas décadas de 60 e 70 em vários movimentos de artes plásticas, realizando exposições de seus trabalhos no Paço das Artes, na Praça da Republica, na Praça Roosevelt, no Embú das Artes e nos Santeiros Imaginários - SEC/ SP. Candidato a vereança na década de 70, J. ALTAIR fez planos e promessas para categoria artística, caso fosse eleito. Em Porto Alegre, com diversas exposições em seu currículo, foi o primeiro artista naïf a levar ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul, a provocação e inquietude na primeira mostra com temática popular intitulada "Ingênuos e Primitivos Gaúchos", que destacou no folclore e em algumas naturezas mortas, elementos da religiosidade que sempre caracterizou seu trabalho. Desde muito tempo, desenvolveu o primitivo de forma original através de cores vivas, criando um mundo místico originado pela cultura afro-brasileira. Ganhou destaque ao realizar exposição individual na Galeria Ítalo-Belga em 1972 e na década de 90, expôs no Copacabana Palace Hotel e na Galeria Jean Jacques Urca, ambas, no Rio de Janeiro. Tem obras em diversos acervos nacionais e internacionais (como a Galeria Salomé em New Orleans; o Museu Internacional de Arte Naif, do RJ; e coleções com o artista uruguaio Carlos Paéz Vilaró em Punta Ballena no Uruguay); tem coleções particulares, no MARGS e no acervo da Prefeitura de Porto Alegre.
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